Peixe grande

Três dias depois de haver pregado o “Sermão de Santo António aos Peixes,” partiu o padre António Vieira para Lisboa. Depois de aproximadamente 60 dias de viagem, e perto dos Açores, o navio foi batido por uma enorme tempestade. Chegou a adernar acentuadamente, de modo que os passageiros se viram obrigados a agarrar a amurada oposta. Tipo Titánico. Os mastros destruídos e as exárcias rotas, o navio apenas manteve-se acima da água. Após dois dias de temor absoluto, apareceram um grupo de piratas holandeses, que deixaram os passageiros em Graciosa e levaram consigo a carga de açúcar, junto com as pertenças pessoais de Vieira e os seus companheiros. Vieira eventualmente chegou a São Miguel, onde pregou o Sermão de Santa Teresa.  

No sermão, Vieira classifica os acasos da viagem como exemplos da providência divina. O pregador até apresenta-se como um Jonas moderno, resgatado da barriga de um grande peixe e encarregado da salvação das almas dos indígenas do Maranhão. O que mais me interessa, no obstante, e a teoria de linguagem que o pregador elabora ao longo do seu Sermão de Santa Teresa. Ao centro desta teoria é a função deíctica da prática verbal e sobretudo, a forma como tal prática é capaz não só de representar o mundo (em termos, digamos, miméticos) senão também de implicar e até construir o mundo consoante com o “en arché ên o logos” do evangelho segundo João. Para Vieira, quero sugerir, o ato de predicar não é tanto uma apresentação (no indicativo) desse logos, quanto uma elaboração (no subjuntivo) do tecido conjuntivo que manifesta essa ordem na esfera sublunar. Ou seja, já aceitamos que Vieira, como pregador barroco, cria dobras concetuais por meio do engenho. Mas além disso: no ato performativo de pregar, Vieira construi e mobiliza várias máquinas de dobragem através dos quais ele procura implicar um mundo de relações pragmáticas.

Por exemplo, ao começo do segundo capítulo do sermão, Vieira oferece uma espécie de arte de pregar:

Com os olhos no Céu, com os olhos na Terra, e com os olhos no Evangelho determino pregar hoje, que é o modo com que nas festas dos Santos se deve pregar sempre. Deve-se pregar com os olhos no Céu, para que vejamos o que havemos de imitar nos Santos: deve-se pregar com os olhos na Terra, para que saibamos o que havemos de emendar em nós: e deve-se pregar com os olhos no Evangelho, para que o Evangelho, como luz do Céu na Terra, nos encaminhe ao que havemos de emendar na Terra, e ao que havemos de imitar no Céu.

Tal como no caso do peixe quatro-olhos do Sermão de Santo António aos Peixes, Vieira desenvolve cá uma rede de relações simultâneas entre o Céu e a Terra. O que ele adiciona no Sermão de Santa Teresa é o evangelho, que serve de luz do Céu na Terra. E o fim de essas relações é sempre a prática. Podemos ver cada conceito que Vieira emprega—céu, terra, evangelho, luz, etc.—como máquina verbalizada (mais ou menos em sentido deleuziano) que procura ligar-se com outras máquinas para impulsioná-las e assim tecer mais ligações. Rede pode ser, como assinalou João Guimarães Rosa, simplesmente “uma porção de buracos amarrados com barbante;” mas mesmo assim, funciona lindamente para capturar peixes.

E dependendo do contexto, o mesmo pregador—um eficaz “máquina de pesca”—pode acabar sendo peixe. No oitavo capítulo do sermão, Vieira narra a sua experiência da tempestade açoriana, descrevendo-se como mais um Jonas:

Mas a prova que não temos no Evangelho, temo-la no pregador. Mui ingrato seria eu, e serei a Deus, se assim o não confessara e assim o não confessar toda a vida e toda a eternidade. A quem aconteceu jamais depois de virado o navio e depois de estarem todos fora dele sobre o costado, ficar assim parado e imóvel por espaço de um quarto de hora, sem a fúria dos ventos descompor, sem o ímpeto das ondas o soçobrar, sem o peso da carga e da água, de que estava até o meio alagado, o levar a pique, e depois dar outra volta para a parte contrária, e pôr-se outra vez direito, e admitir dentro em si os que se tinham tirado fora? Testemunhas são os anjos do céu, cujo auxílio invoquei naquela hora, e não o de todos, senão daqueles somente que têm à sua conta as almas da gentilidade do Maranhão. ‘Anjos da guarda das almas do Maranhão, lembrai-vos que vai este navio buscar o remédio e salvação delas. Fazei agora o que podeis e deveis, não a nós, que o não merecemos, mas àquelas tão desamparadas almas que tendes a vosso cargo. Olhai que aqui se perdem também connosco.’ Assim o disse a vozes altas, que ouviram todos os presentes, e supriu o merecimento da causa a indignidade do orador. Obraram os anjos, porque ouviu Deus a oração. E não podia Deus deixar de a ouvir, porque orava nela o mesmo perigo.

Há vários elementos performativos nesse trecho que podíamos analisar, por exemplo, a oração integrada no sermão e o ritmo que se elabora na narração dos acontecimentos. Mas liga também o pregador mesmo com o evangelho, não necessariamente como glosa à palavra de Deus tanto quanto mais uma manifestação dela: “Mas a prova que não temos no Evangelho, temo-la no pregador.” E finalmente, quem exatamente ora no episódio que relata Vieira? Ele mesmo, com certeza. Mas o que é ele, no contexto da oração? Trata-se de uma pergunta sobra a subjetividade poética e teorias do século XVII sobre o que constitui uma pessoa e como se relaciona com a terra, o céu e o evangelho. Segundo Vieira, Deus salva os navegantes da tempestade precisamente porque quem fala é o perigo—perigo de Vieira morrer, mas além disso o perigo de os indígenas maranhenses não aceitarem Cristo. Afinal, o que apresenta Vieira são “máquinas em toda parte, e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com seus acoplamentos, suas conexões […] sempre fluxos e cortes” (Deleuze e Guattari, O anti-édipo 11).

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